25/11/2023 às 07h19min - Atualizada em 25/11/2023 às 07h19min

'Comecei a ser recusada em promoção': a major trans que pode ser demitida da PM

Lohn Freitas responde a processo de exoneração em Santa Catarina desde que apresentou pedido para mudança do nome social

O Globo
A major da PM-SC Lumen Lohn Freitas — Foto: Reprodução
“Nasci em Santo Amaro da Imperatriz, na Região Metropolitana de Florianópolis, em 1979. Meu pai é oficial da PM aposentado. Estudei em colégio militar e moramos em um quartel quando meu pai foi comandante em Araranguá.

Aos 17, passei na prova da Polícia Militar. Tenho certeza de que fiz a escolha certa. Depois de três anos na academia, com estudos, treinamentos físicos em um ambiente controlado, fui para a vida real.

Trabalhei em Joinville como comandante do policiamento. Em seguida vim trabalhar em Florianópolis. Trabalhei por duas décadas nos setores administrativo e de inteligência. Adquiri bastante experiência. Me casei, tive três filhas. Até que tive depressão e fui diagnosticada com transtorno bipolar.

Eu sentia uma falta de energia inexplicável nessas crises de depressão. Houve dias em que não conseguia me levantar da cama. Num certo momento achei que fosse parar de respirar, tamanha a exaustão. A carreira e a família foram para o segundo plano. Fiquei afastada por dois anos para tratamento.

Voltei da licença em janeiro de 2022. Fui para a diretoria de saúde durante o afastamento, onde a PM aloca pessoas que aguardam processo de reforma (aposentadoria) para não ocupar uma vaga em outros setores. Mas a junta médica percebeu que eu estava melhorando. Consegui alta para retornar.

Em agosto daquele ano me percebi uma pessoa transgênero. De repente tudo fez sentido. Sempre me sentia desencaixada, inadequada. Sempre soube que tinha alguma coisa errada. E nunca soube o que era. Contei aos meus irmãos, depois aos meus pais. Por último, à PM. Eu sentia que, primeiro, precisava criar uma rede de apoio para, caso a polícia lidasse mal com a minha situação, tivesse onde me abrigar. Mas tudo saiu melhor do que eu imaginava.

Em janeiro, pedi para trocar a documentação. Chamei os colegas para uma reunião no auditório. ‘A partir de agora me chamo Lumen’, disse. ‘E gostaria que vocês se referissem à minha pessoa no feminino’. Expliquei o que é uma pessoa transgênero, tirei dúvidas.

Achava que teria rejeição, mas houve o contrário. Fui aplaudida. Meus colegas passaram a corrigir outras pessoas que se referiam a mim de forma inadequada. Usam o pronome certo, me respeitam muito.

Major da PM de Santa Catarina, Lumen Lohn Freitas — Foto: Divulgação

Major da PM de Santa Catarina, Lumen Lohn Freitas — Foto: Divulgação


Comecei a me envolver com movimentos sociais, aparecia em fotos que circulavam na internet com maquiagem, roupa feminina. Não gastei muita energia para esconder.

A mudança de nome foi atendida rapidamente. Mas comecei a ser recusada nas oportunidades de promoção.

De repente, comecei a responder a um processo de expulsão.

O processo foi solicitado em novembro, quando eu estava em processo de transição de gênero. A Polícia Militar fala em ‘condutas inadequadas’, mas não faço ideia do que seja isso.

Oficialmente, o Conselho de Justificação diz que o processo está se dando porque não fui promovida. Uma das razões para esse processo é o oficial não constar na lista de pessoas que progrediram. Mas eu não estava porque tinha sido afastada. Não é uma causa moral, é uma causa médica.

Primeiro disseram que eu tive resultados desfavoráveis na avaliação de capacidade moral, considerando meus ‘numerosos afastamentos’. Na última recusa, disseram que não tenho atributos para cargos mais elevados e não houve melhora profissional. Se não sei do que sou acusada, como vou melhorar? Tudo leva a crer que seja um ato de transfobia.

É uma promoção, tem um incremento financeiro na minha renda, um status. Ficaria muito feliz. Mas também tem a questão de abrir caminho. Só tivemos três pessoas trans na história da PM de Santa Catarina. Deve haver bem mais, que se descobriram e não devem querer se expor. O aparato contra mim, essa dificuldade criada para a permanência, desestimula que outras se identifiquem.

Agora que me estabilizei, consegui ter clareza para perceber o que de fato acontecia comigo, com o meu corpo. Ser uma pessoa trans é normal, não é opção, não escolhi ser assim. Mas não passou pela minha cabeça postergar minha transição para evitar passar por tudo isso. Depois que você se percebe, deixar de ser você mesma é impossível. Acho que tornei as pessoas do meu convívio, senão mais progressistas, menos preconceituosas.

Quero que as outras pessoas trans tenham a segurança de que nada de ruim vai acontecer com elas. Que não precisem viver estereótipos que nos sobram, do serviço marginal ou da sobrevivência sub-humana. A gente pode ter pessoas trans em posições de chefia, em qualquer lugar. Há duas deputadas federais.

Agradeço muito à minha esposa, Lisiane, que já era minha namorada antes da transição. Muito mais do que me aceitar, ela me apoia. Meu primeiro kit de maquiagem foi ela quem deu. Não a julgaria se ela tivesse ido embora. Mas fico muito, muito feliz que ela tenha ficado.”


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