28/02/2020 às 06h25min - Atualizada em 28/02/2020 às 06h25min

Estuprada dos 3 aos 11 anos, mulher grava confissão do tio e detalha abusos

BHAZ
“Ele inventava ‘brincadeiras’ para poder se esfregar em mim. Falava que eu era uma boa menina, que eu não poderia contar para ninguém. Eu arranho a minha pele até hoje, onde ele se esfregava. Sou obrigada a cortar as unhas para parar de me machucar”.

O relato acima é de Carla Vanessa Venâncio da Silva, de 35 anos, que sofreu abusos na infância, dos 3 aos 11, por parte de um tio. Ela resolveu falar a respeito das violências que sofreu após procurar tratamento psicológico.

A auxiliar administrativa confrontou o tio de 46 anos e ele confessou os crimes, em vídeo. Ela o denunciou em setembro de 2019 e tenta alguma medida legal junto à Justiça. De acordo com uma advogada criminalista ouvida pelo BHAZ, o crime está prescrito, mesmo com a confissão do autor, e não há mais medidas legais a serem tomadas.

Atualmente, 24 anos após os abusos, a vítima vive a base de remédios na casa onde mora, no Rio de Janeiro (RJ). “O primeiro abuso aconteceu na casa da minha mãe, quando eu tinha 3 anos. Os outros aconteceram na casa do meu avô paterno, no bairro Vicente de Carvalho, onde meu tio morava. Eles se repetiram por várias vezes, até os meus 11 anos, mas eu não entendia o que estava acontecendo”, lembra.

Primeiro abuso

Carla não se esquece do primeiro abuso, na casa da mãe. Segundo ela, a cena pesada é nítida em sua cabeça. “Minha mãe lavava roupa para outras pessoas, a gente era muito pobre. Ela saiu para levar as roupas e pediu ao meu tio que ficasse comigo lá em casa. Ele me colocou dentro do quarto e começou a me forçar um sexo oral, o primeiro estupro. Ele colocava o pênis na minha boca, eu fechava a boca. Ele abria ela de novo até ‘finalizar’ o que queria”.

Outra lembrança que a vítima tem, vividamente, é de quando ela tinha entre 4 e 5 anos, novamente na casa do avô. “Eu lembro pela altura do meu cabelo, usava muito amarrado, com rabo de cavalo. Eu era bem loirinha na época. Minha mãe ia trabalhar, aí eu, meu irmão e minha prima ficávamos em casa”, conta a vítima.

O tio inventava “brincadeiras” para que os dois ficassem dentro de um quarto. “Esse dia ele praticou estupro anal, na cama do meu avô. Tive sangramentos, minha mãe e meu pai me levaram ao médico. Foi identificada uma infecção intestinal, o médico nem tocou em mim. Como eu não sabia o que tinha ocorrido, não falei nada. O médico concluiu que a infecção que tive foi por conta de amendoins que eu tinha comido. Fiquei muitos anos proibida de comer amendoim de novo, até isso ele tirou de mim. Depois disso, ele arranjou outras formas de me estuprar”, continua.

“Ele não me penetrava mais, inventava que estava brincando. Me levava para o quarto e dizia que era uma brincadeira de dança. Ele colocava o pênis para fora e esfregava no meu corpo, ‘roçava’ na minha vagina. Ele sabia exatamente o que ele estava fazendo. Isso aconteceu por várias vezes. Eu arranho a minha pele até hoje, onde ele se esfregava. Sou obrigada a cortar as unhas para parar de me machucar”, lembra emocionada.

‘Pedia a Deus para não morrer’

Dos 7 aos 11 anos os abusos continuaram, mas a vítima teve um bloqueio, uma espécie de apagão desse período. Aos 11 anos, ocorreu um dos piores abusos sofridos por ela. “Eu ia na casa do meu avô quase todos os fins de semana. Muitas pessoas da minha família moram ali perto. Nesse dia, estavam todos na casa da minha tia, que era vizinha do meu avô na época. Como já estávamos ali o dia todo, fiquei com sono e fui na casa do meu avô dormir um pouco”, explica.

O tio já não morava mais na casa do avô, mas na residência debaixo. “Eu lembro de já estar dormindo em uma cama de solteiro, em um corredorzinho que tinha casa. Acordei com uma dor muito forte, senti um peso muito grande, não conseguia me virar. Percebi que era ele em cima, pedi por favor para ele parar, pois estava doendo”, lembra a vítima.

“Eu sempre fui muito miúda, franzina. Ele tampou a minha boca, a mão dele era muito grande, tampava minha boca e meu nariz ao mesmo tempo, só tinha medo de morrer naquela hora. Pedia a Deus para não morrer. Ele escutou o barulho de alguém abrindo uma porta, aí saiu correndo pelo portão. A única coisa que fiz foi vestir minha calça e chorar muito, até dormir”, relata.

A auxiliar administrativa só foi entender o que havia ocorrido durante uma palestra no colégio, quando tinha 15 anos. “Era uma aula de educação sexual, na 8ª série. Quando foram explicando tudo, só conseguia me sentir culpada, que eu merecia passar por tudo aquilo. As falas dele, dizendo que eu era boazinha e que não ia contar para ninguém, ecoavam na minha cabeça”, continua.

Fim dos abusos após 8 anos

Depois dos 11 anos, a vítima conta que o tio não fez mais nada, já que só ia à casa do avô acompanhada dos pais e não dormia mais lá. Os anos sem contar para ninguém foram muito sofridos, faltava coragem para denunciar o tio e contar para a família. Em setembro do ano passado, ela decidiu contar para a família.

“Tive uma tentativa de suicídio no dia em que eu contei para a minha família. A ‘caixinha’ abriu, tive muitas sensações. Nesse período, eu já estava tomando medicações e tomei toda uma cartela inteira de rivotril. Meu namorado veio e me levou na UPA, o médico prescreveu vários remédios. Disse para eu tomar bastante água, em vez de dormir, fiquei acelerada”, relembra sobre o dia.

A vítima contou primeiro para a mãe, depois para o pai. “Contei tudo, mostrei o áudio da minha prima, que é minha testemunha. Minha prima sabia, mas também não contou nada para ninguém”, conta.

Ana Cristina Vasconcelos da Silva, prima de Carla, conta ao BHAZ que se lembra perfeitamente dos episódios. “Nós ficávamos com a minha tia, já falecida. A gente ia brincar na casa debaixo, ele chamava a gente para brincar de ginástica, era brincadeira mesmo, mas sempre muito rápido. Quando era com a Carla, ele colocava ela dentro do quarto e fechava a porta. Nunca entendíamos o motivo, e porque demorava tanto. Só depois que tudo fez sentido”.

Tio confessa abusos

Depois da conversa com a família, eles foram até a casa do tio. “Foi aí que fiz as filmagens, fiz ele confessar. Primeiro ele diz que não, mas depois assume tudo. Quando ele viu meu irmão, ele viu que não tinha mais como mentir. Ele confessou tudo na frente do sogro, cunhada, namorada, na minha frente. Ele pediu perdão”, lembra.

No vídeo a seguir, o tio aparece com a esposa, além de Carla, o irmão e o pai dela. No decorrer das imagens, a esposa do abusador chora muito, sem acreditar no que estava acontecendo. Muito calmo, o homem de 46 anos confessa os abusos contra a sobrinha.

Na maior parte do tempo, o homem não olha para a vítima. “Eu mudei de lá para cá, me arrependo demais. Quando conheci minha esposa, minha vida mudou. Eu não sou esse monstro que vocês estão pensando. Peço desculpas, de coração, ajoelho aqui se for preciso. Eu não sou mais assim”, começa.

Durante o vídeo, ele é confrontado pela vítima, pelo irmão dela e pela esposa, que chora bastante. Quando o abuso aos 11 anos é relatado, ele diz que não se lembra. “Hoje eu posso falar para vocês, jamais faria isso novamente. Eu não queria fazer ela sofrer. Eu tinha muito medo disso acontecer, pedia muito a Deus para não chegar esse momento. Mas eu sabia que isso acontecer. Eu chorei muito. Pedi para você [Carla] não contar. Não destrua essa amizade tão bonita que tenho com meu irmão”, continua.

Ao fim do vídeo, o homem diz que os abusos acabaram naquela época, que ele não fez outras vítimas. “Eu tenho uma filha de 19 anos, eu nunca abusei dela ou do meu filho. Foi com você, mas com mais ninguém. Eu não sei [o que passava pela minha cabeça], hoje não sou essa pessoa”, completa.

Família por parte de pai se afasta

Segundo a vítima, toda a família por parte de pai se afastou dela após a revelação. “Mesmo com a confissão, eles preferem não acreditar. E, para piorar, além de não acreditarem, ainda me deram um apelido: ‘a estuprada de Taubaté’, em referência àquela mulher que teve uma falsa gravidez”, continua.

Carla sabe da dificuldade mas quer, de alguma forma, que ele pague na Justiça. “Pelo visto não vai acontecer. Já conversei com várias advogadas, muitas diziam que eu me encaixava na lei Joanna Maranhão (entenda abaixo). Eu não desisti, mesmo o delegado suspendendo o inquérito duas vezes. Estou esperando o Carnaval passar, vou fazer uma carta pedindo para o Ministério Público”, relata.

Com o tratamento psicológico, Carla teve coragem de fazer a denúncia. “Eu me saboto o tempo todo, sempre faço de tudo para ser largada nos relacionamento. Eu faço os tratamentos pois preciso saber os motivos de eu ser desse jeito, ou eu conto ou morro. Escolhi primeiro morrer, depois decidi viver, ainda bem que tive essa oportunidade”.

Atualmente, Carla é ativista contra os abusos sexuais na infância. “Criei o grupo ‘Florescendo Vanessas’, de apoio a vítimas de abusos. Converso com as mulheres, tento ajudar da forma que posso. Posto relatos anônimos, quero que ninguém passe mais pelo que passei”, completa.

Carla saiu da posição de vítima e se tornou dona de sua história

Advogada de direito de família e psicanalista, Kelly Gonçalves Primo conta que esses casos acontecem, na maioria das vezes, no bojo familiar. “É onde o autor encontra a oportunidade de praticar os atos. Ele conta, muitas vezes, com a negação da família, a recusa em acreditar na denúncia da vítima. Isso fortalece o agressor”, diz.

Para a especialista, é importante que a vítima consiga ressiginifcar suas memórias. “A partir do momento que ela conta essa história, ela se torna a dona da narrativa e decide fazer algo com esse trauma, com esse luto. Ela passa a elaborar um caminho dela, inventando uma forma de se apropriar de sua subjetividade que claramente foi marcada por esses abusos. Além disso, está ajudando outras pessoas”.

“Existe um senso de que nos casos de violência, há uma tendência em se identificar ou com o agressor ou com a vítima. No caso da Carla Vanessa, vemos que ela conseguiu inventar um caminho novo. Quando ela cria uma página na internet para ajudar outras mulheres, ela sai da posição de vítima, se torna dona da própria narrativa e vira alguém que faz uma mudança na sociedade, combatendo os agressores”, continua.

É importante frisar que as vítimas devem sempre procurar ajuda psicológica e que o Estado tem o dever de fornecer assistência para a elas. “É óbvio que essa história não se tornará bonita a partir daí, pois uma violência sempre será uma violência. Ela reconstrói o lugar dela, a posição que ela ocupa nessa história, se torna dona da própria memória”, completa.

Polícia não investigará caso

A Polícia Civil do Rio de Janeiro informou que o caso foi relatado ao Ministério Público e encerrado. Ao BHAZ, Paola Alcântara, advogada criminalista e vice-presidente da comissão da advocacia criminal da OAB-MG, explica que a decisão da polícia foi correta.

“Eu, enquanto mulher e mãe, me coloco em uma posição de revolta, entendo o sofrimento de toda violação e impactos no seu desenvolvimento individual e social. Mas, por mais que me coloque nesta posição, entendo que não é possível que o caso tome qualquer andamento penal e a decisão da policial civil do RJ foi acertada”, começa a advogada.

A profissional explica que existem leis que definem atuação do direito penal e, para isso, é preciso entender sua importância. “Qual finalidade do direito penal? Em linhas básicas, é de realizar o controle estatal para evitar abuso de poder, definindo o que é crime e suas penas, bem como prevenir prática de novos crimes e reprimir aqueles já cometidos. Para isso, existem alguns princípios e procedimentos que devem ser seguidos, dentre eles o princípio da legalidade, proibição de retroatividade da lei penal e o instituto da prescrição penal”, continua.

A advogada explica que, de maneira breve, “legalidade dispõe o que será crime e sua pena, para que qualquer indivíduo tenha consciência que sua conduta no momento da prática é crime e qual será sua punição. Já a proibição da retroatividade, dispõe que nenhuma lei mais gravosa pode aplicar em fatos passados para prejudicar o réu e, por fim, a prescrição é instituto que dispõe qual o período que o Estado tem para apurar e punir sobre conduta criminosa”.

Para a especialista, em casos que envolvem abusos sexuais com grande lapso temporal, como no caso apresentado, esses elementos têm que ser avaliados. “O abuso começou por volta de 1986 e teve fim por volta de 1994, pelo que a vítima se recorda. Logo, devemos observar quais eram as leis aplicáveis ao caso na época, quais os crimes e penas, bem como analisar se o Estado pode apurar o crime quando foi noticiado”.

“Na época do abuso, havia distinção entre estupro (art. 213, conjunção carnal) de atentado violento ao pudor (art. 214, sexo anal, sexo oral e similares), as condutas narradas por ela se amoldam nesta última hipótese, que tinha como previsão pena de 3 a 9 anos de reclusão, sendo que a prescrição começava contar quando do conhecimento do autor pelos genitores – no caso apresentado -, sendo um prazo de dezesseis anos para apuração, conforme disposto no CP. Logo, ele estaria prescrito em 2010”, relata.

A advogada continua e diz que “diante do cenário em que permitia às vítimas se sentirem desamparadas, amedrontadas, houve alterações legislativas para tentar corrigir o cenário, contudo, elas somente se aplicam novos casos, diante da irretroatividade da lei penal, conforme mencionado acima”.

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